Editado em Cotia (SP), impresso em Peterborough (UK)
- casamatinas
- há 3 dias
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A agente literária Lúcia Riff, um monumento da vida editorial brasileira, deu uma entrevista ao Projeto Draft que todo autor (consagrado ou iniciante) e seus editores deveriam ler. Temos, graças a Deus, uma oferta de qualidade de cursos e oficinas sobre redação e escrita (além dos clássicos de Luiz Antonio Assis Brasil e de Chico Moura, os proporcionados pela Escrevedeira e pela Casa Folha, para citar alguns mais recentes) que contribuem decisivamente para a melhoria do padrão médio da escrita literária no país nos últimos anos; mas Lúcia Riff – com experiência, conhecimento e sensibilidade de quem representa e já representou centenas de escritores – fala com sinceridade sobre um aspecto pouco conversado, a gestão da carreira de escritor, com seus altos e baixos, com suas dificuldades de longo prazo. “Direito autoral é a coisa mais instável do mundo”, diz ela.
(Diga-se de passagem que a fundadora da agência Riff está na mesma página dessa Livros imperecíveis: sua vivência cotidiana do mercado e sua intuição sentem algum estranhamento quando leem os números em queda do mercado e as pesquisas que indicam diminuição da leitura no Brasil; como dissemos nas newsletters O que dizem os livros silenciosos 1 e 2, o mercado de livros no país é maior, mas complexo e tem mais oportunidades que as estatísticas oficiais conseguem capturar).
Um dos pontos apontados por ela é a dificuldade contemporânea de se trabalhar os livros menos procurados do catálogo de um autor, de como manter vivo o interesse por eles. Esse é um desafio comum aos agentes, autores e editores. “Tem muita coisa vendendo bem, reimprimindo, e outras que é preciso cuidar. Manter isso tudo funcionando é um desafio e tanto.” Uma das alternativas que as mudanças tecnológicas oferecem, hoje em dia, é a impressão sob demanda. As editoras podem manter os livros de maior interesse imediato impressos em seu estoque para atender às demandas dos leitores, e preservar as obras com menor procura imediata em arquivos para impressão na medida das solicitações pontuais e infrequentes.
Rede de impressão internacional
Chamadas de POD (print on demand) ou de “impressão rápida” (por conta da alta velocidade das máquinas de impressão digital e do fato de elas permitirem tiragens pequenas), essas soluções estão sendo adotadas em larga escala nos mercados mais maduros, especialmente nos EUA, como reguladoras do estoque das editoras e como alternativa para manter vivas as obras de menor procura de escritores importantes. Estes teriam toda a sua obra disponível em livros de papel – já impressas ou impressas virtualmente sob demanda. Os livros imperecíveis da casa matinas são uma derivação dessa ideia, com a importante ressalva que a casa matinas não trabalha com obras que estão sob contrato de editoras estabelecidas.
Um outro aspecto importante do POD é a descentralização da impressão. A maior operação de impressão sob demanda do mundo é capitaneada pela Ingram, uma gigante americana de distribuição e impressão sob demanda em vários países. O livro Um tipógrafo na colônia: vida e obra de Silva Serva, precursor da imprensa, do jornalista Leão Serva (sim, ele é descendente do português Manuel Antonio da Silva Serva, que montou a primeira tipografia privada no Brasil, em Salvador, em 1811) foi editado pela primeira vez pela Publifolha, em 2013. Em junho passado, foi reeditado pela casa matinas, que tem sua redação em Cotia, próxima a São Paulo; à época, Leão Serva era correspondente internacional da TV Cultura, e morava em Londres.
A casa matinas imprime e distribui seus livros pela UmLivro, que, por sua vez, participa de uma rede de impressão internacional em POD da Ingram, com empresas semelhantes em 12 países. Isso significa que o correspondente internacional pode comprar o livro que escreveu e publicou no Brasil, por exemplo, na Amazon UK (por 10 pounds), e receber em sua casa londrina o exemplar impresso na Inglaterra. Sem os altos custos de logística e de emissões de gases que teria para importar seu livro impresso no Brasil e com maior rapidez para recebê-lo. A impressão descentralizada reduz custos e tempo, ganha eficiência e é ambientalmente mais correta. Iniciativas como esta da Ingram potencializam o mercado internacional para a exportação dos livros produzidos no Brasil. Bom para os autores, bom para editores e... bom para os agentes.
Escrevendo no Forte de São Pedro
Diogo Soares da Silva e Bivar era maçom e esteve do lado dos franceses na invasão a seu país, quando Napoleão tentou conquistar Portugal. Julgado e condenado como traidor da pátria, com sentença de degredo em Moçambique, na escala do navio que o conduzia ficou preso no Forte de São Pedro, na Bahia, onde cumpriu sua pena. Ali escreveu e editou o três números daquela que passou a ser considerada como a primeira revista literária no país, a As Variedades ou Ensaios de Literatura.
A definição dos gêneros é complexa para essa época. As Variedades se filia aos veículos de ensaio do século XVIII inglês, como Tatler e Spectator (há uma importante estudiosa brasileira desses veículos, Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke), que são normalmente atribuídos à tradição jornalística. “O jornalismo do século XVIII, em particular, tem merecido especial atenção dos estudiosos, cientes hoje do significado histórico deste novo gênero, reconhecido já na época com a marca do século e como uma das mais recentes e felizes invenções”, diz Pallares-Burke.
Não se sabe como, morando na prisão, sem biblioteca ou fontes de consulta à mão, Silva e Bitar produziu, em 1812, aquela que deve ter sido o primeiro manual de filosofia no país, o Quadro demonstrativo ou cronologia da filosofia antiga, que ocupou o terceiro e derradeiro número de As Variedades. Eles foram impressos na tipografia de Manuel Antonio da Silva Serva, que também imprimia o primeiro jornal privado no Brasil (os dois primeiros, Correio Braziliense e Gazeta do Rio de Janeiro, eram um impresso em Londres e o outro órgão oficial rodado na Imprensa Régia) o Idade D’Ouro do Brazil.
Medida do Bonfim
O primeiro jornal privado não era propriamente um jornal independente: para ter autorização Real de funcionamento, ele era submetido a uma supervisão de pessoas nomeadas pelo príncipe regente D. João (chamado de “revisor”, o primeiro censor foi o próprio conde dos Arcos, governador da Bahia): o jornalismo nasce tutelado no Brasil e a história do poder no país será daí para frente também a história das tentativas de controle da imprensa. Não à toa, As Variedades trazia escrito na sua folha de rosto: “Com as licenças necessárias”.
Nunca é demais lembrar também que não se podia imprimir nada (nem jornais nem livros) antes de 1808, o que atrasou enormemente a nossa vida intelectual. Máquinas de impressão eram temidas pelos poderosos, daí o controle sobre elas (séculos depois, durante a ditadura militar, as gráficas também passaram a ser vigiadas; para o movimento estudantil, ter acesso a um mimeógrafo clandestino era como poder respirar: o nosso grande crítico de artes Rodrigo Naves zelava pelo mimeógrafo do centro acadêmico da Escola de Comunicações de Artes da USP como se fosse um tesouro – e era mesmo).
Além dos periódicos (entre 1811 e 1846 rodou cerca de 60 veículos baianos, entre ele um chamado O Doudo nos Seus Lúcidos Intervalos), a tipografia de Silva Serva imprimiu grande parte dos livros publicados em Salvador na primeira metade do século XIX – jornalismo e literatura dividiam as mesmas máquinas nessa época. Ele era também o divulgador e o vendedor (além do mercado local, na corte, no Rio, e até em Lisboa) do que imprimia, criador da primeira escola de artes gráficas e foi um dos que contribuíram para a primeira biblioteca pública na Bahia.
Como tesoureiro da Devoção do Senhor do Bonfim, ele foi um dos responsáveis pela comercialização das “medidas do Bonfim” (o nome vem do comprimento do braço da imagem do Senhor; muito tempo depois, as fitinhas do Bonfim, além de protetoras, como lembra Leão Serva, seriam também usadas curiosamente como marcadores de livro).
Da tipografia dos Silva Serva na construção por cima dos Arcos de Santa Bárbara, na Freguesia da Conceição da Praia, na Bahia do início do século XIX, até a impressora digital da Inglaterra que imprime (em português) a sua história contada por seu descendente dois séculos depois, a relação entre o escrito – seja jornalismo seja literatura – e a maneira de imprimir e distribuí-lo são influenciadas reciprocamente; a cada mudança, abrem-se imensas possibilidades, e os autores brasileiros já podem incluir entre elas o fato de terem os seus livros impressos na língua original em outros países.
casa matinas: uma editora sem ritmo e sem algoritmo.

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