Da alegria de editar José Paulo Paes
- casamatinas
- 17 de out.
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Quando uma geração de jovens trotskistas — entre eles Caio Túlio Costa, Rodrigo Naves e Mário Sérgio Conti —, que se formou na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP nos anos 1970, passou a botar de pernas para o ar o jornalismo cultural paulista, primeiramente no Leia Livros, da editora Brasiliense, e, na década seguinte, na Folha de S. Paulo, um anjo da guarda literário, desses que vivem na sombra, os ajudou na procura de ar: o poeta, tradutor (e teórico e crítico de tradução como disse Paulo Henriques Britto, que tem autoridade de sobra para falar nessa área), crítico (sua obra crítica sobre a literatura brasileira foi reunida em dois volumes não faz muito, pela Ateliê), editor e espécie de formador daquela juventude, José Paulo Paes.
(Diga-se de passagem que era uma geração que tinha avidez pelos estudos e pela crítica literária, que parecem em desprestígio entre os escritores mais jovens hoje em dia...)
Eram dois os domínios, coordenados inicialmente por Caio Túlio Costa, dessa turma na Folha: a Ilustrada, mais envolvida com o dia-a-dia da vida cultural em fase de reflorestamento com os primeiros passos da abertura política, e o Folhetim (antecessor da atual Ilustríssima; ele foi criado por Tarso de Castro em 1977 e inaugurou um novo projeto editorial no início dos 80), que dava voos culturais mais altos, liderado no primeiro momento por Mário Sérgio Conti, que saiu para se integrar à editoria de cultura da Veja, e depois por aquele que se tornaria um do mais importantes pensadores sobre arte no país, Rodrigo Naves. (Eles seriam seguidos, entre outros, por Augusto Massi, que viria a ser o grande editor da Cosac Naify, por Nélson Ascher, ele mesmo ótimo tradutor, e por Bernardo Carvalho, que em 1995 lançaria o romance Onze e se tornaria um dos principais escritores contemporâneos brasileiros).
Colaborador ideal
O Folhetim foi um marco na tradução da poesia no país: além de José Paulo Paes, Ana Cristina César, Antonio Medina Rodrigues, Augusto de Campos, Aurora Bernadini, Boris Schnaiderman, Cláudio Viller, Décio Pignatari, Francisco Achcar, Haroldo de Campos, J. Cavalcante de Souza, João Moura Jr., José Lino Grunewald, Modesto Carone, Paulo César Souza, Paulo Henriques Britto, Paulo Leminski, Régis Bonvicino, Trajano Vieira, ufa!, para citar alguns.
Somada à excelência das traduções e do cast de poetas traduzidos — pelo calibre dos tradutores você pode imaginar o calibre dos traditos —, havia outro fenômeno que hoje em dia se precisa esfregar os olhos para acreditar que ele realmente existiu: as traduções eram regularmente veiculadas na última página do suplemento dominical do jornal que se tornou o de maior circulação no país, levando alta poesia a 400, 500 mil lares semanalmente. Existem poucos exemplos de fenômenos do tipo na história do jornalismo e, lembre-se, isso ocorreu no Brasil, o país de baixos índices de leitura. (Fenômeno parecido, mas em outro contexto, ocorreu com a coleção Os Pensadores, da Abril, lançada na década anterior, na qual livros dos mestres da filosofia universal, com ótimas traduções, chegaram a dezenas de milhares de exemplares vendidos em banca de jornal).
José Paulo Paes foi um esteio para essa nova geração topetuda. Como disse Mário Sérgio Conti, ele “era o colaborador ideal tornado realidade, o sonho do editor de um caderno de cultura”. Zé Paulo, como logo ficou sendo chamado por essa galera, não só traduzia, como também introduzia: os poetas neogregos, por exemplo, Nikita Rános, Kostas Karyotákis, Konstantinos Kaváfis. Difícil imaginar como naquele homem que era, como descreveu Rodrigo Naves, “avesso a ênfase no escrever, no falar e no proceder. Detestava chamar atenção e seu comportamento discreto era, num homem constante, a constância predominante”, coubesse tanta literatura, tanto interesse, tantas línguas visitadas.

Raio de luz e alegria
Além das traduções e das contribuições para a imprensa, sua atividade como editor na Cultrix, iniciada em 1961, também contribuiu para a formação literária de uma época. Só para citar dois livros imperecíveis lançados sobre a sua coordenação que ajudaram a mudar o jeito de se pensar a literatura no país: Elementos de semiologia, de Roland Barthes (com tradução de Isidoro Blikstein) e o ABC da literatura, de Ezra Pound (com vendas imensas no Brasil), que contou com José Paulo Paes como tradutor ao lado de Augusto de Campos.
Foi uma sorte dessa geração ter cruzado seu caminho com uma pessoa da estatura intelectual e moral de Zé Paulo. Ele recebia os grandes e a acolhia os noviços da mesma maneira. Não se recusava a colaborar com novas publicações ou editoras quando acreditava nas ideias editoriais. Um exemplo dos mais marcantes está no livro O primeiro leitor, de Luiz Schwarcz, com quem teve uma marcante relação de parentalidade intelectual: foi ele quem sugeriu o nome da Companhia das Letras (na verdade, ele sugeriu Letras & Companhia, rearranjado depois pelo Luiz).
Enfim, José Paulo Paes cultivou hábitos de consequências duradouras: ele é do grupo que deu novo significado ao trabalho criador da tradução no país; ele introduziu referências definitivas, incluindo sua própria poesia; participou de atividades que se tornaram pontos de apoio literários; e, sem ser professor regular ou acadêmico, ajudou a formar várias gerações de gente interessada em literatura.
Quando o professor de filosofia e tradutor Márcio Suzuki lembrou à casa matinas que Zé Paulo havia selecionado, traduzido e editado, nos seus tempos de Cultrix, algumas histórias de Charles Dickens, a lembrança caiu como um raio de luz e alegria sobre a pequena editora iniciante. Dickens está nas origens do cerne editorial da casa, as relações entre jornalismo e literatura. Seus tales (que não chegam a ser propriamente contos) e sketches (difícil achar uma tradução precisa para o gênero, talvez “esboços” mesmo; José Paulo Paes diz que “eles participam mais da crônica ou do ensaio descritivo do que do conto propriamente dito”), introdutores da descrição mais viva e mais detalhadas nos periódicos londrinos sob a rainha Vitória, são tradicionalmente classificados como jornalismo (The Dent Uniform Edition, da Universidade de Ohio, reuniu-os em três grossos volumes sob o título de Dickens’ Journalism), embora não faltem a eles o elemento da fantasia. Marcelo Rollemberg, que organizou e traduziu esses relatos curtos sob o título de Retratos londrinos, para a Record, chamou-os de “jornalismo fantástico”.
Só uma cadeira
Uma das fragilidades da reportagem brasileira está no ato de descrever. Há falta de treinamento técnico, de amplitude vocabular, de familiaridade com a escrita, de imaginação (sim, ela é importante) e até de refinamento e de gosto pela descrição como uma das essências do texto de imprensa. Ler Dickens pode valer por várias disciplinas nas faculdades de jornalismo. Como dizia T.S. Eliot, citado por José Paulo Paes na introdução desse Histórias humanas que a casa matinas está reeditando, com uma simples frase ele “podia fazer de um personagem um ser real, de carne e osso”.
Se você precisa dar a idade de uma pessoa em uma matéria, veja isso: “Mr. Augustus Minns era um solteirão de mais ou menos quarenta anos de idade, segundo afirmava, ou de mais ou menos quarenta e oito anos, segundo diziam seus amigos”; ou isso: “Miss Maria Crumpton admitia ter quarenta anos de idade, admissão perfeitamente supérflua ante a evidência dos seus, pelo menos, cinquenta anos”. Um dos exercícios bons para uma candidata ou um candidato a repórter é o de descrever uma cadeira, só uma cadeira, assim como o pintor treina suas habilidades no ateliê diante de uma modelo nua. Dickens descrevendo uma cadeira, na tradução de José Paulo Paes: “espaldar alto, entalhada com arte fantástica, estofada com fazenda adamascada florida e tendo os pés arredondados revestidos de panos vermelhos, como se sofresse de gota”. Não se precisa de imaginação para descrever?
Há muita curiosidade na vida de Dickens, além do fato de ele ter sido a primeira celebridade literária da língua inglesa aos 25 anos: fazia longas caminhadas, foi adepto do mesmerismo, atuava como ator em peças amadoras (que produzia) e, entre as muitas ações de caridade, dedicou-se a apoiar escritores necessitados e prostitutas aposentadas. Ele foi desprezado pelo sucesso que obteve, por suas histórias jornalísticas serem consideradas literatura menor, pelos exageros sentimentais (como as misérias da condição humana e suas iniquidades) e estilísticos (diziam que nunca deixava de dizer em dez palavras o que poderia ter dito com uma). Quase duzentos anos depois, nada disso tem muita importância. Há sempre algo interessante no que ele escreveu, e sempre algo a se aproveitar para o jornalismo, para a literatura e para a consciência moral.
José Paulo Paes fez a seleção dos textos, a tradução e as notas de Histórias humanas. Ah, e escreveu o prefácio, também. Nele, vê Dickens como um tipo de escritor proposto por Sartre, aquele que “mergulhado nas angústias do seu tempo, sacrifica voluntariamente os valores ‘eternos’ e ‘infinitos’ da arte às exigências, temporais e finitas, da contemporaneidade”. E, ainda que todas essas coisas “provoquem, no leitor moderno, um bocejo de tédio mal disfarçado, atente-se para a importuna lágrima de enternecimento que lhe acompanha o bocejo.” E complementa Zé Paulo, um homem enxuto de sentimentalismos bobocas: “Essa lágrima vale, indubitavelmente, por toda uma apologia”.
Dica do editorial
Livro: Crítica reunida sobre literatura brasileira e inéditos em livro, vols. 1 e 2, José Paulo Paes, Ateliê, 2023.
Livro: José Paulo Paes: melhores poemas, seleção e prefácio de Davi Arrigucci Jr., Global, 2003.
Ensaio: “Um homem como outro qualquer”, Rodrigo Naves, Piauí nº 21, junho de 2008.
Filme: Scrooge (1951), a versão visual definitiva de A Christmas Carol, de Dickens. Se você nunca viu nada com Alastair Sim, um dos grandes entre os grandes atores britânicos (ele era escocês), é a sua oportunidade.
Documentário : Já que falamos nesta carta-notícias do início dos 1980 e como a recente morte de Hermeto Pascoal foi um ritual tocante de celebração e alegria, evocamos o documentário Hermeto Campeão, de Thomaz Farkas, que é de 1981.

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Acabo de assistir o programa "Provoca" com o Matinas. Sensacional !
Sempre acompanhei Matinas pelos trabalhos na Ilustrada (Folha) e Roda Viva. Mas a categoria de fã desse cara veio quando ganhei de presente de um amigo jornalista aqui em Curitiba o "O livro das Vidas". Ali, para mim, estava a genialidade editorial revelada.
Incrível a história familiar abordada no programa. Isso dá um livro, inclusive.
Feliz em conhecer este projeto. Fazendo minha listinha aqui.
Parabéns ao Matinas e à equipe. Forte abraço a todos.
André Santini
Executivo de Marketing neste mercado insensível; Prof universitário; Doutor em Estudos Mediáticos (UFP - Porto); Mestre em Comunicação e Linguagens (UTP - PR) e aluno de caras como o Matinas no amor pelas…