O que John Hersey, Margueritte Duras, Ed Murrow, Rubem Braga e Joel Silveira têm em comum?
- casamatinas
- 17 de out.
- 9 min de leitura

Notícias frescas em primeiro lugar (como reza o bom jornalismo): para a turma que acompanha o jornalismo literário no Brasil, a Companhia das Letras, que já havia editado A milésima segunda noite na avenida Paulista e A feijoada que derrubou o governo, colocou em pré-venda mais um livro de Joel Silveira: O inverno da guerra. Voltaremos à “Víbora”, como o chamava Assis Chateaubriand, mais à frente.
Little boy
Então, mais um agosto se foi, levando com ele as efemérides dos 80 anos do final da Segunda Guerra. Do ponto-de-vista deste modesto veículo aqui que pertence ao gênero epistolar digital, a carta-notícia (ela quebra um dos princípios fundamentais da correspondência, o da confidencialidade da interação escritor-leitor; hoje em dia, o debate sobre se é legítimo ou não publicar a correspondência pessoal de escritores praticamente se esvaneceu na era da voracidade editorial), falou-se pouco da relação jornalismo-literatura no grande conflito que redesenhou a vida globalmente e preserva suas cicatrizes até hoje.
Quando, em agosto de 1946, um ano depois de um artefato chamado intimamente pelos pilotos americanos de Little boy detonar o horror em Hiroshima, a revista The New Yorker dedicou uma edição inteira ao relato sobre o que havia acontecido com uma cidade do Japão nas 24 horas após o lançamento da primeira bomba atômica, o sucesso obtido por essa publicação tinha muito a ver com a descoberta dos leitores do que poderia acontecer com eles em uma nova realidade do desenvolvimento científico aplicado ao militarismo da geopolítica global. Hiroshima, escrito em estilo descritivo discreto por John Hersey, um repórter com grande conhecimento do Oriente, revelava histórias doídas que ficaram decalcadas no imaginário de quem as leu — hoje, elas voltam a tirar nosso sono com as novas hostilidades entre as nações (num momento de reacomodação global), muitas delas com seu arsenal atômico.
A reportagem de Hersey ganhou a reputação de ser uma das mais importante peças da história do jornalismo. A ideia da matéria era acachapantemente simples: o que se passou na vida de seis habitantes de Hiroshima (nem todos japoneses) nas 24 horas após a bomba ser derrubada sobre a cidade e seus rios. A narrativa demonstrava um teorema jornalístico de uma obviedade inapelável: histórias humanas são mais fortes do que estatísticas.
Pois este texto foi o escolhido em 2001 para ser o primeiro volume da coleção Jornalismo Literário, da Companhia das Letras, na época, em parceria com o site Último Segundo, do portal iG — a experiência mais radical até então de se incorporar as novas possibilidades trazidas pela internet e o mundo digital ao jornalismo. A coleção se tornaria única no panorama editorial internacional: nela se encontram, organizadas em uma só prateleira e com apresentações de contextualização, parte significativa do melhor jornalismo escrito, facilitando a vida de estudantes, pesquisadores e leitores que se interessam por não ficção de alta voltagem literária.
Matéria de memória
Pouco mais de uma década depois de a New Yorker circular com o texto de Hersey, Margueritte Duras começou a escrever um dos roteiros originais que marcaria para sempre os rumos do cinema: o script de Hiroshima mon amour, filme seminal da Nouvelle Vague, dirigido por Alain Renais em 1959, considerado como o primeiro a usar o recurso de imagens do passado (a memória traumática é a matéria do filme: Ele, arquiteto japonês sem nome, vivido pelo ator Eiji Okada: “—Você não viu nada de Hiroshima. Nada!” Ela, atriz francesa sem nome, vivida pela atriz Emmanuelle Riva, para muitos a primeira personagem feminina do cinema com profunda densidade psicológica: “— Eu vi tudo. Tudo!”).
Margueritte Duras: “Entre duas pessoas tão dessemelhantes geograficamente, filosoficamente, historicamente, economicamente, racialmente etc., como é possível acontecer, Hiroshima será o lugar comum (talvez o único no mundo?) onde os fatores universais do erotismo, amor e infelicidade aparecerão em uma luz implacável”. As cenas iniciais das partes nuas dos corpos dos amantes desesperados, inicialmente cobertas de cinzas e depois transformadas em suor, entremeadas com cenas de hospitais e do museu da destruição de Hiroshima e de seus habitantes (inicialmente, Alain Resnais faria um documentário), com o diálogo reproduzido no parágrafo anterior garantiam ao espectador que eles estavam diante de algo inovador na história do cinema.
A galera do Cahiers de Cinema se reuniu para, a partir do filme, discutir as relações entre literatura e cinema. Se, como querem alguns, o jornalismo literário não pode existir, o que se dirá de um cinema literário? Jean-Luc Godard, um dos heróis desta carta-notícia, próximo a madame Duras, espantou-se com o fato de a fita, como se dizia antigamente, de Renais não ter referência nenhuma na história pregressa do cinema, e comentou sobre a densidade da personagem feminina de Riva: “Hiroshima mon amour é Simone de Beauvoir bem-acabado”.
Campeão de debates
Nas mesmas listas que colocaram o livro Hiroshima no cânone do jornalismo aparecia uma série de matérias, também originadas pela Segunda Guerra, porém, interessantemente, elas não se filiavam à imprensa escrita (embora sejam, como se verá, de notável fatura) que as dominavam, mas à certas transmissões radiofônicas anunciadas para milhões de ouvintes na América pelo bordão “This is London”.
Seu autor não era nem sequer jornalista: depois de ter sido campeão de debates escolares, ele era o diretor do escritório londrino da rede de rádio e televisão CBS quando os aviões alemães da Luftwaffe começaram as suas 67 noites de intenso bombardeio sobre a capital dos ingleses. Sem tu vai tu mesmo: faltando jornalistas (estavam reportariando a guerra em outros pontos da Europa) para a cobertura, Edward R. Murrow começou ele mesmo a fazer os boletins noticiosos: em um lance de muita ousadia, subia ao rooftop do edifício dos escritórios da CBS e de lá, com o ruido dos aviões e dos bombardeios ao fundo, entrava ao vivo para fazer seus relatos sobre a Blitz que em pouco tempo passaram a eletrizar americanas e americanos desesperados para saber os desdobramentos dos conflitos no Velho Continente. (Uma dica: a Audible disponibiliza no site da Amazon americana os episódios dos despachos do front feitos por Murrow pela bagatela de US$1,25 cada um).
Londres foi evacuada: Murrow no rádio: “Londres está sem graça, agora que as crianças se foram. Por seis dias não ouvi a voz de uma criança. E este é outro sentimento estranho”. Londres bombardeada: Murrow no microfone: “Hoje eu fui comprar um chapéu. Minha loja preferida se foi, reduzida a pedacinhos”; “A vitrine do alfaiate está cheia de uniformes. Antes, tinha dinner jackets bem cortados e paletós esportivos de tweed”; “Há uma longa fila de pessoas esperando a correspondência. Seus escritórios ou casas foram bombardeados, e o carteiro não pode encontrá-los. Não há queixas”; “Não há bravatas, vozes altas, apenas uma quieta aceitação do que ocorre. Para mim essas pessoas são inacreditavelmente corajosas e calmas. Elas são os desconhecidos heróis desta guerra.”
Cigarros Camel
No Brasil, nós tenderíamos a chamar suas histórias (classificadas por um estudioso como dark poetry) do dia-a-dia da Londres em ruínas, em frases curtas adequadas para a narrativa radiofônica, de crônicas — e elas pouco devem, se devem, aos nossos melhores sabiás do gênero, para usar o título da excelente antologia dos cronistas brasileiros organizada por Augusto Massi. Mas Murrow não seria apenas um monumento do rádio, tornar-se-ia também o primeiro nome influente do jornalismo na TV, veículo para o qual — sem parar de fumar os cigarros da marca Camel, mesmo quando estava no ar, e sem perder a qualidade literária de suas falas — trouxe carisma, consciência e envergadura moral.
O excelente filme de George Clooney (seu pai, o âncora Nick Clooney, tinha Murrow como herói), Boa noite e boa sorte (oh!, a trilha sonora com Dianne Reeves, um convite a rodadas e rodadas de dry martinis) centra-se em dois pontos fundamentais da trajetória de Ed Murrow:
O discurso memorável e corajoso, conhecido como “Cabos e luzes numa caixa”, feito em 1958, ao ser homenageado justamente pela na época chamada Radio Television News Directors Association (RTNDA; ela trocou não há muito o Directors por Digital, para se adaptar aos tempos mais moderninhos) — que já naquela época falava sobre a necessidade de o jornalismo televisivo aprofundar suas coberturas com altivez e sem recuar diante de pressões econômicas e do poder;
O confronto dele com o senador Joseph McCarthy (o cara que via comunismo até em encontros de Filhas de Maria, um dos precursores do trumpismo nos anos 1950), no qual o jornalismo investigativo e bem feito venceu por nocaute com a precisão dos golpes das palavras: “nós não seremos levados pelo medo para uma época irracional se mergulharmos profundamente em nossa história e em nossa doutrina — e nos lembrarmos de que nós não descendemos de homens medrosos, nem de homens que tinham medo de escrever, de falar, de associar-se e de defender causas que no seu tempo era impopulares”, falou Murrow para toda a América, em seu programa See it now. Trata-se de um dos gloriosos casos de jornalista que demoliu uma liderança política demagógica e perigosa.
Ao saber que a CBS não iria promover o seu programa contra McCarthy, Murrow abriu a própria carteira para pagar com seu dinheiro um anúncio no The New York Times. Além de ter sido um marco no rádio e na TV, ele ainda tem em seu currículo um dos mais importantes documentários feito pela TV aberta americana, A colheita da vergonha (1960), sobre a miséria dos trabalhadores migrantes no sul do EUA. Foi o testamento deixado para a CBS, da qual sairia no ano seguinte. No seu livro essencial sobre a história da mídia e suas relações com o poder nos EUA, The powers that be, David Halberstam, outro gigante, classifica Ed Murrow como um dos raros casos em que o homem é do tamanho do mito.
Literatura de auto-não-ficção
Por falar em Segunda Guerra e crônicas, o Brasil também tem seus heróis da cobertura da Segunda Guerra. Não nos esqueçamos de que Rubem Braga foi um dos correspondentes na Itália, e seu cuidado com os pracinhas anônimos e pobres, que foram totalmente despreparados e mal equipados para defender a FEB na Itália, deram uma nova perspectiva para a visão dos brasileiros na guerra. Murrow falou do silêncio atordoante da Londres sem as crianças evacuadas; o nosso velho Braga, em despacho ao mesmo tempo singelo e revoltado, conta as cruezas das guerra e de quem as provoca (“oh hienas, oh porcos, de voracidade monstruosa, e vós também, águias pançudas e urubus, os altos poderosos de conversa fria ou voz frenética, que coisa mais sagrada sois ou conheceis que essa quieta menina camponesa?”; o texto na íntegra pode ser lido no Portal da Crônica Brasileira, no site do Instituto Moreira Salles), se sensibilizou com a menina Silvana Martinelli, de dez anos, ferida por estilhaços de uma granada. A vida ao rés-do-chão, como diria Antonio Candido, flagrando as ruinas da história.
E aqui chegamos ao Joel Silveira, a Víbora, cujos relatos de suas histórias pessoais (ele praticava um estranho gênero que diante das classificações literárias na moda poderíamos muito bem chamar de “literatura de auto-não-ficção”), são tão interessantes quanto as suas coberturas.
Na Itália, ele passou uns dias no front não de batalha, mas do balcão do bar do Albergo dela Città (as histórias que ele conta sobre as bebidas tomadas às talagadas enquanto apurava material para suas reportagens mereciam um capítulo da coluna “Gelo e gim”, do Daniel Benevides, na Folha; um dos memoráveis relatos já escritos sobre a visão de uma garrafa de whisky é dele, ao vislumbrar, em janeiro de 1965, no armário de um anfitrião de jantar em Belo Horizonte, após o cerco da polícia de Magalhães Pinto à sucursal do Correio da Manhã da capital mineira, na qual ele se encontrava: “Guardado num dos pequenos compartimentos que compunham, em engenhosa harmonia, o conjunto do belo móvel, tal e qual a imagem de um santo de estimação instalado no seu nicho, lá estava ele, o glorioso dourado litro de whisky — um Grant’s de 12 anos!”), em Roma, disputando um trago de rum com batalhões de correspondentes de guerra, entre eles o famosíssimo Hebert Matthews, do New York Times, de quem ficou amigo, para inveja dos jornalistas brasileiros.
Silveira foi enviado para a cobertura da guerra pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, o nosso Cidadão Kane. Chatô disse que desejava vê-lo antes de ele embarcar para a Itália. Já de farda, Joel passou pelo quarto andar do prédio da rua Sacadura Cabral, onde ficavam as redações dos veículos dos Diários e da agência de notícias Meridional, à época dirigida por Carlos Lacerda. Ao vê-lo, Chatô disse:
— O senhor está uma beleza seu Silveira! Um beleza!
Conversaram um pouco e Chato-briand, como escrevia Oswald de Andrade, já ia despachando seu correspondente de guerra novinho em folha, quando Joel o lembrou que havia pedido para vê-lo antes de partir. Ele deu uma risada e disse
— Tem razão, seu Silveira, ia esquecendo. Tenho mesmo um pedido a lhe fazer: vá para a guerra, seu Silveira, mas por favor, não me morra! Não me morra, seu Silveira. Repórter não é para morrer. Repórter é para mandar notícias!
casa matinas: uma das trincheira no front do jornalismo com doses de literatura.
Dica do editorial
Filme: Boa noite e boa sorte (2005), dirigido por George Clooney.
Filme: Hiroshima, mon amour (1959), direção de Alain Resnais, com roteiro de Marguerite Duras.
Música: trilha sonora de Boa noite e boa sorte, com Dianne Reeves.
Livro: Crônicas da guerra na Itália, Rubem Braga (Record, 2014).
Livro: Viagem com o presidente eleito, Joel Silveira (Maud, 1996)
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