A primavera pernambucana de Antonio Callado
- casamatinas
- 17 de set.
- 7 min de leitura

Mistério: por que cargas d’água do Capibaribe-Capiberibe desaguou Recife dois dos três poetas maiores brasileiros, e ainda por cima, primos entre si? (O terceiro poeta maior, é claro, empilhava as pedras – rolling stones, rock’n’ roll, pedra do sono, pedra-q-ronca, haviam muitas pedras no caminho do imaginário poético do século XX – em Itabira, Minas Gerais).
Em que pedaço da Rua da União, entre chicotes-queimados, entre as vidraças quebradas de Dona Aninha Viegas e o pincenê de Totônio Rodrigues, o estilo humilde (como viu o crítico Davi Arrigucci Jr.) de Manuel Bandeira captou a sensibilidade nacional a ponto de ser uma grande influência na mocidade alegre e independente que fez a poesia marginal nos anos 1970 (e dela deriva grande parte da poesia contemporânea brasileira)?
Em que parte da língua mansa, do ventre triste do cão danado de Kurosawa, do cão preto do Fausto, do cão sem plumas que passa pela cidade como um rio passa pela cidade, a fatura precisa de João Cabral de Melo Neto se espalhou pela poesia que rima com geometria como um das vertentes fortes da alma “acrilírica”, como dizia o Caetano Veloso do araçá azul, nacional?
(Aqui cabe a ainda menção a uma outra das maiores sensibilidades nacionais: em que parte dos passos do Clube dos Pás, dos Vassouras, do Haroldo Fatia, do Valfrido, do Cebola, do Colasso, se teceu a grande Manhã de Carnaval do homem chamado Maria – no ótimo título do livro de Joaquim Ferreira dos Santos – que se espalhou, abraçada à melodia do carioca Bonfá, aos melhores ouvidos do mundo, mundo, vasto mundo?)
Polígono da Seca
Entre 12 e 19 de março de 1953, o Correio da Manhã, um dos marcos da história do jornalismo brasileiro, publicou uma série de reportagens sobre a seca no Nordeste (a seca foi um dos grandes temas sociais brasileiros por décadas, não só no jornalismo: Vidas secas, de Graciliano Ramos, inspirou, no cinema, o chamado Ciclo da Seca, no qual a cinematografia enquadra não só a adaptação do romance por parte de Nélson Pereira do Santos, mas também o Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha; presença incômoda na conjuntura, palavra da época, a escassez do pingo d’água fez até mesmo a asa branca, do Gonzagão e do Humberto Teixeira, bater asas do sertão).
Quem assinava a reportagem era o carioca de Niterói, Antonio Carlos Callado, ainda não reconhecido como escritor que viria a se tornar – havia produzido algumas peças de teatro – mas já ocupava o cargo de redator-chefe do jornal de Paulo Bittencourt (a quem dedicou o romance Madona de cedro), depois de um período na Europa, onde trabalhou na BBC e na Radiodiffusion Française. Ele fez 1.250 km de táxi no meio do que se chamava na época de Polígono da Seca, e passou rapidamente por Pernambuco.
À época, vendia-se, com ingenuidade ou com muita esperteza, a ideia de que a construção de açudes ajudaria a acabar com a seca. Callado não embarcou nessa. A ironia, uma de suas grandes armas estilísticas (manifestação de seu profundo senso de realidade), classificou essa ideologia interesseira como a “arte abstrata de fazer açudes”. No meio do lugar onde o nada é tão vazio que o nada não se reconhece, tomou gostoso café. Pergunta à bonita sertaneja “que tinha grandes olhos de turca” que o serviu se o café era fresco. “—É donzelo. Saidinho do pilão”, ela respondeu. Poesia a palo seco. Na seca.
As reportagens foram publicadas em livro, sob o título de Seca Fria (juntamente com a clássica obra de jornalismo literário de Callado, Esqueleto na lagoa verde), pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC), em 1961.
O “cambão”
Seis anos depois, Antonio Callado volta, pelo mesmo Correio da Manhã, em duas ocasiões, para reportariar no Nordeste. Suas matérias são publicadas entre 10 e 23 de setembro e entre 29 e 2 dezembro de 1959. Dessa vez, ele aumenta sua estadia em Pernambuco, não por conta da seca, mas por causa de uma transformação social que está ocorrendo no Estado: os trabalhadores no Engenho chamado Galileia, no município de Vitória de Santo Antão, começaram a se organizar coletivamente para fazer valer seus direitos mais básicos (no estado, ainda vigia o “cambão”, uma permanência tardia do regime escravocrata na qual o camponês dedicava dias de trabalhos gratuitos para os senhores da terra).
Ali começava a fervilhar alguma coisa que passou a aterrorizar o “agro-ogro” de antanho, como aterroriza o de hoje: o medo das Ligas Camponesa – um dos fantasmas que serviram para ajudar a articular o reacionarismo do golpe militar de 1964 – como ficaram conhecidas as articulações sob o guarda-chuva da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco. Elas saíram do Galileia e pipocavam pelo estado.
Mais: ganharam representatividade política por meio do deputado Francisco Julião, outro dos fantasmas da ópera de 64. Julião era do Partido Socialista Brasileiro, e sobre isso Callado não poderia deixar de apontar o lápis de sua ironia: “De João Mangabeira, Hermes Lima, Osório Borba, Mário Pedrosa ou Rubem Braga aos mais humildes militantes o PSB é um partido desesperadamente sem assunto. É um clube de gente culta, inteligente mas sem a menor ideia do que fazer politicamente consigo mesma”.
A série de reportagens, da qual três episódios vinham abaixo do chapéu (como se dizia no jargão jornalístico) “Despertar em Pernambuco”, teve repercussão e ajudou a provocar uma sucessão de fatos como poucas vezes se viu na imprensa brasileira: as terras do engenho Galileia foram, depois de quatro anos, finalmente desapropriadas de acordo com o projeto de Julião, e a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), foi criada sob o comando de Celso Furtado, que se projetaria como um dos mais importantes e originais economistas do país.
As reportagens e suas repercussões foram reunidas em um volume da Civilização Brasileira intitulado Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco (e o subtítulo: Aspectos da luta pela reforma agrária no Brasil; sobre ele, Glauber Rocha escreveu no Pasquim: “quando o Brazyl janguista monta John Reed com Godard”) com capa do grandioso Eugênio Hirsch (se você não conhece, faça uma busca pelas capas dos livros da Civilização Brasileira da época), em 1960.
Produtor de ideias
Entre 7 de dezembro de 1963 e 19 de janeiro de 1964, o Jornal do Brasil publicou uma extraordinária série de reportagens escrita por Antonio Callado sobre a sua terceira ida a Pernambuco. Ele cobriu a mais importante experiência de avanços sociais realizadas por um estado brasileiro, a primavera pernambucana, durante o brevíssimo período do primeiro governo de Miguel Arraes habitando o Palácio do Campo das Princesas.
“Pernambuco é, neste momento, o maior laboratório de experiências sociais e o maior produtor de ideias do Brasil. É o estado mais democrático da Federação”, escreveu ele. Além de retomar o tema dos avanços sociais da sindicalização dos trabalhadores do campo, com as Ligas e Julião, Callado conversou com o líder comunista Gregório Bezerra, com padres progressistas, observou in loco o método de alfabetização de Paulo Freire sendo praticado, e entrevistou até estudantes trotskistas presos por uma força policial e militar que ele considera como a mais civilizada do país.
Uma das grandes personagens do livro é mulher, e é da Paraíba: Elizabeth Teixeira, que após o assassinado do marido João Pedro Teixeira, a mando do pai dela, se tornou a líder camponesa de Sapé, com quase 10 mil associados (Elizabeth completou 100 anos no último 13 de fevereiro). Callado constatou que, no campo, apesar do trabalho dela, a Paraíba ainda não contraíra “em toda a sua virulência a febre pernambucana”. Depois do golpe de 64, ela foi presa e passou duas décadas na clandestinidade – sobreviveu com o nome falso de Marta Maria da Costa –, sendo redescoberta pelo grande cineasta Eduardo Coutinho que fez dela personagem do premiadíssimo Cabra marcado para morrer, de 1984.
Calção azul
Quando o livro com as reportagens de Antonio Callado (Tempo de Arraes: padres e comunistas na revolução sem violência, reeditado agora pela casa matinas) saiu pela José Álvaro Editor, em julho de 1964, ele já era, como diz o autor, “uma evocação histórica”. O efêmero governo Arraes havia virado pó pelo golpe de 1º de abril daquele ano. Gregório Bezerra havia sofrido, no dia seguinte, tremenda humilhação a céu aberto, quando, vestindo apenas um calção azul, foi amarrado pelo pescoço e puxado pelas ruas do Recife, enquanto o policial Wandenlock Wanderley gritava; “Este é o comunista que queria destruir os lares de vocês. Agita, agora, traidor!”
Se o prefácio de Tempo de Arraes transpira a frustração histórica do autor com o fim dos avanços sociais em Pernambuco, lido hoje, em conjunto com as reportagens do ano de 1963, é documentário de um momento fora da curva na trajetória do país: vivo, inovador, e cheio de energia para diminuir as iniquidades. Como ele escreveu, “Pernambuco se dedicara à mais escassa das atividades deste país: a de fazer História”.
Tempo de Arraes é um dos pontos altos do Antonio Callado jornalista, sempre a serviço do compromisso moral de observar os fatos sob a ótica da justiça social – como também se vê no Vietnã do Norte, outro livro dele reeditado pela casa matinas.
Poder-se-ia (epa!) dizer muito sobre as qualidades literárias do jornalismo de Callado, mas talvez baste citar apenas as palavras de Nélson Rodrigues, que estava no outro extremo das suas posições políticas: “Qualquer artigo de Callado é uma espécie de quarteto de cordas, de uma insuportável delícia auditiva. E será assim, eternamente assim. Daqui a 200 anos, ele viverá de sua música verbal".
Taí um bom blurb (eles ainda estão sendo usados?) para os audiobooks dos livros de Antonio Callado.
casa matinas: uma editora muito engraçada (Ivan Finotti, Folha de S.Paulo)

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