Cálice, ou setenta dias que abalaram SP
- casamatinas
- 26 de jun.
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Atualizado: 27 de jun.

No primeiro dia de junho de 2025, um domingo, os espectadores que estavam na Marina da Glória, no Rio de Janeiro, para o ver o show Tempo Rei, de Gilberto Gil, tiveram uma comovedora surpresa: Chico Buarque subiu ao palco para cantar com Gil a música Cálice, composta pelos dois há 52 anos. Foi somente a segunda vez (a outra havia sido em 29 de julho de 2018, no Festival Lula Livre), em mais de meio século, que eles conseguiram cantar juntos a música; criada durante a Semana Santa de 1973, para ser cantada na grande feira de música chamada Phono 73, Cálice foi censurada e os microfones de Chico desligados durante a apresentação no Centro de Convenções do Anhembi, às margens do Tietê, em São Paulo. Pouco tempo depois, Gilberto Gil cantou-a, em gesto de desobediência civil, num show histórico para alunos da USP, no Salão Vermelho da escola Politécnica daquela universidade.
1973 foi um ano de muito medo em São Paulo. Cale-se, a reportagem do jornalista Caio Túlio Costa que a casa matinas reeditou, entra nos detalhes do período de 70 dias de pavor e violência – mas também de brio democrático, de afirmação artística e de grandes transformações – que abalaram São Paulo naquele ano. Em fevereiro, a indignação com o sequestro, a tortura e o assassinato do Minhoca –o sorocabano Alexandre Vanucchi Leme, de 22 anos, estudante de Geologia na USP– na sede do DOI-CODI, junto ao Parque do Ibirapuera, provoca uma reação para qual a ditadura, na onipotência de seus agentes, não estava preparada. Além do Minhoca, dezenas de estudantes da USP foram sequestrados e torturados naquele período.
Enquanto a repressão se esmerava na câmara de tortura, uma profunda mudança cultural e comportamental se amalgamava na capital paulista -- que crescia aceleradamente com o chamado milagre econômico da ditadura militar. O Phono 73 foi uma manifestação de poderio da gravadora Phonogram, dirigida por uma das pessoas que contribuíram decisivamente para o fortalecimento mercadológico da música popular brasileira e da cultura pop no país, o criativo sírio-francês-carioca Andre Midani. Os maiores nomes da MPB eram do cast da gravadora comandada por ele, e estavam escalados no line up para os quatro dias(de 10 a 13 de maio) do festival no Anhembi: não só Gil e Chico, mas CaetanoVeloso, Rita Lee, Jorge Ben Jor (à época Jorge Ben), Nara Leão, Elis Regina, Raul Seixas, Wilson Simonal e Os Mutantes, entre outras e outros.
A grande repercussão do festival começou já nos ensaios: as cantoras baianas Maria Bethânia e Gal Costa, que fariam uma homenagem à Mãe Menininha do Gantois durante os shows, terminaram a preparação com um beijo na boca, fotografado pela imprensa. Para a cidade de São Paulo, que vinha da Marcha Pela Família e a Liberdade (um dos respaldos civis mais ruidosos ao Golpe Militar) nove anos antes, que era sede da TFP (Tradição, Família e Propriedade), no bairro de Higienópolis, uma organização católica ultraconservadora, e que centralizava o rancor moralista das forças repressoras da hora, externada por figuras como o delegado Sérgio de Paranho Fleury e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, personagens perversos do livro Cale-se, o gesto de afeto e de libertação de Bethânia e Gal soou como uma afronta imperdoável. Mas, na cidade que assistiria, ao mesmo tempo, aos primeiros shows do Secos e Molhados e as performances do grupo Dzi Croquetes – As Internacionais, manifestações chamadas à época de andróginas, uma mudança profunda se refletia nas luzes dos flashes das câmeras fotográficas que iluminaram o beijo de Bethânia e Gal.
O Phono 73 teve momentos marcantes. Um deles, o encontro entre Caetano Veloso e Odair José para cantarem Eu vou tirar você deste lugar. Caetano, que já tinha se credenciado como um grande intérprete da alma cafona e brega nacional ao cantar, no auge da Tropicália, Coração de mãe, de Vicente Celestino, confirmava a sua liberdade de uso de linguagens e de experimentador de deslocamentos estéticos ao subir ao palco da elite cultural e econômica do país para cantar com o artista goiano. Aliás, provocou este mesmo público ao pronunciar, do palco, o aforismo criado na hora, “nada mais Z do que um público classe A”.
Composta às pressas durante a Semana Santa de 1973, Cálice expressava nos versos os momentos em que se encontravam seus autores. No exílio, do qual voltara não fazia muito tempo, Gil se abrira para uma visão mais mística da vida, incorporar ao Oriente nas suas canções, refazia seu fazer artístico; Chico era o alvo preferencial da Censura do regime militar, estava sendo sufocado pela interdição de suas palavras, precisava de subterfúgios – metáforas, pseudônimos– para falar. Cálice podia ser ouvido como cale-se; este era o ponto que dava a liga entre os dois universos, o artístico e o político. Como se sabe, a música foi censurada. Os dois, corajosamente, tentaram driblar a Censura cantarolando palavras e sons na melodia da música durante a apresentação na Phono 73, mas os microfones de Chico Buarque, a dada altura, foram desligados pelos censores. É aí que os elos entre a violência em São Paulo e música se juntam.
Nomeado três anos antes pelo papa Paulo VI para ser o arcebispo metropolitano de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns recebeu a comissão de estudantes da USP que passou a se mobilizar depois do assassinato do Minhoca e da prisão de outros tantos colegas, e aceitou realizar a missa de sétimo dia em memória do aluno da Geologia. Os estudantes procuraram também outras instituições como a OAB, por exemplo, e políticos, como Ulysses Guimarães – que naquele ano lançaria a sua anticandidatura simbólica à presidência, já que não havia eleições diretas à presidência da República --, e foram apoiados. Assim, a missa de Alexandre Vanucchi Leme, realizada na Catedral da Sé sob um cerco policial poucas vezes visto na história da pauliceia, tornou-se um dos marcos da retomada dos movimentos pró-democracia e pelos direitos humanos naquele contexto da repressão cerrada exercida na cidade.
Algumas semanas depois, Gilberto Gil estava se apresentando, em temporada modesta para os padrões dos megashows de hoje, no Teatro das Nações, na avenida São João, no centro de São Paulo. Um grupo de estudantes foi convidá-lo a fazer um show na USP; para surpresa deles, o cantor e compositor topou. Na Poli, onde o show foi realizado, quem se surpreendeu foi Gil: os estudantes passaram a pedir que ele cantasse Cálice, que desde a proibição da Phono 73, continuava inédita. Em clima de camaradagem de grêmio estudantil, mas com firmeza e coragem, Gilberto Gil, no momento de alta voltagem da violência contra os estudantes, em canto de desobediência civil, entoou pela primeira vez em público a música Cálice com todas as letras. Não só por isso, mas também muito por isso, o movimento estudantil se fortaleceu a partir daí (e uma de suas correntes políticas mais fortes, não por coincidência, passou a se chamar Refazendo). Naquele ano, na moita, cópias em fita cassete do show de Gil na Poli circulavam de mão em mão entre os estudantes, e elas tiveram tanta importância na sensação de estar fazendo história por parte dos jovens que as ouviam quanto a participação em passeatas e atos públicos pela volta da democracia que começaram a pipocar desde então. Na paralela, Gil alimentava o sonho de liberdade de garotas e garotos que se insurgiam contra a ditadura.
Além do relato minucioso desses setenta dias que agitaram São Paulo na política, na cultura e no comportamento, o livro de Caio Túlio Costa traz uma outra discussão importante do período, aquela que dividia, no universo estudantil, as visões das relações entre arte e política. A discussão remonta a uma conflituosa ida de Caetano Veloso e os poetas concretistas Augusto de Campos e Décio Pignatari à Faculdade de Filosofia, Ciências Sociais e Letras, na rua Maria Antônia, em 1968, e passa pela ruidosa contenda com Caetano durante a apresentação da música É proibido proibir (por ironia, inspirada numa pichação dos estudantes franceses de Maio de 68), no teatro do Tuca, da PUC de São Paulo, no bairro de Perdizes, dentro do Festival Internacional da Canção.
Areação inflamada de Caetano Veloso, relembrada no livro Cale-se, às vaias e objetos atirados ao palco durante sua apresentação é, até hoje, um dos mais importantes documentos brasileiros sobre a inesgotável celeuma entre arte e política. “Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”, diz Caetano aos estudantes de esquerda que viraram as costas para o palco. Anos depois, bem mais amena, a questão reaparece no show de Gil na USP: os estudantes querem que ele cante as antigas composições de mais aderência a protestos sociais e ele responde que não se reconhece mais naquelas canções. Essas visões diferentes sobre as relações entre arte e política também se ramificaram entre as diferentes tendências políticas no renascimento do movimento estudantil na década de 1970, dividindo, por exemplo, as correntes mais internacionalistas que aceitavam o rock, e as mais nacionalistas, que o achavam uma manifestação alienada do capitalismo global.
Caio Túlio Costa optou por um recurso estilístico de muito risco em seu livro: o da utilização da forma do diálogo em reconstituição histórica. Esse processo sempre caminha ao lado de uma plaquinha onde se lê: Perigo! Mas, no caso, os diálogos – ao manterem o clima de tensão e medo, que eram a matéria viva daqueles dias dos primeiros meses de 1973 em São Paulo – dão força inovadora para a narrativa jornalística, trazendo à leitura de Cale-se, muitas vezes, um quê do suspense de romances policiais.
Curioso o destino da música Cálice: Chico Buarque a gravou com Milton Nascimento, mas Gilberto Gil evitou gravá-la – chegando mesmo a dar uma entrevista dizendo que tinha muita dificuldade com ela, por ser sobre a “dor, o tormento, a repressão” e pelo peso da figura do Pai, da primeira pessoa da Santíssimo Trindade, com essa “sombra permanente sobre nós”. Que ele tenha agora cantado a música com Chico, na sua turnê de despedida dos mundos dos shows, significa muito. Cálice será sempre o lado bonito, sensível e transcendental de uma história triste e brutal, vivida de maneira intensa na capital paulista em 1973. Que, 52 anos depois, ela seja agora entoada por milhares de pessoas ao vivo e esteja tendo uma imensa repercussão nas redes sociais, emocionando muitos, talvez signifique que o mundo não seja mesmo pequeno – e que não aceite nenhuma forma de cale-se.

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