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A humilhação americana e a glória da imprensa

Atualizado: 27 de jun.

     Guerrilheira vietcong, de 24 anos, no Delta de Mekong. Crédito da foto: Le Minh Truong.
     Guerrilheira vietcong, de 24 anos, no Delta de Mekong. Crédito da foto: Le Minh Truong.

A Guerra Americana no Vietnã, como os vietnamitas a chamam, foi a guerra do jornalismo: o televisivo, que era grande novidade da cobertura, o fotográfico, com imagens que marcaram decisivamente a visão sobre a guerra, e o escrito, que foi exercido em momento de plenitude. Em recente artigo na Literary Hub, a propósito dos 50 anos do final da guerra e da acachapante derrota americana, George Black, ele mesmo autor de obra sobre o assunto, diz que foram publicados cerca de 30 mil livros tematizando o conflito – e olhe que ele deve estar se referindo apenas aos de língua inglesa. Boa parte desses títulos, certamente, foi escrita por gente de imprensa ou deriva da cobertura jornalística da guerra.


Três grandes jornalistas brasileiros documentaram in loco a Guerra do Vietnã. Eles foram ao sudeste asiático no mesmo ano, 1968, considerado por muitos como o ano mais violento da guerra. Em março, José Hamilton Ribeiro esteve no Vietnã do Sul, enviado pela revista Realidade, publicada pela editora Abril. Durante a cobertura, o repórter pisou em uma mina – o nome é em si uma triste ironia – na Estrada Sem Alegria e perdeu a perna esquerda. Fez relato memorável no livro O gosto de guerra, relançado em edição ampliada pela Companhia das Letras, em 2024.


No mesmo período, encontrava-se também no Vietnã do Sul, o jornalista Luís Edgar de Andrade, que chegou a entrevistar, no hospital de campanha americano, seu companheiro de profissão brasileiro ferido. Todo correspondente de guerra é um corajoso, mas Andrade correu um risco maior: pegou o dinheiro que recebeu ao ser demitido do Jornal do Brasil e foi cobrir a guerra por conta própria, como freelancer. Não transformou sua cobertura em livro (seus despachos do front eram publicados pelo Correio da Manhã), mas escreveu um romance interessante sobre suas andanças no sudeste asiático: Bao chi, bao chi, publicado pela editora Objetiva, em 2002. O título da obra seria a frase, em vietnamita, usada pelos correspondentes para dizerem “Não atirem, sou jornalista”.


No segundo semestre de 1968, Antonio Callado, que já havia publicado o romance Quarup, é o único jornalista latino-americano a ver a guerra acima do Paralelo 17, que separava os dois Vietnã. O Norte era o enigma. Fechadíssimo. Difícil de se mostrar como um guerrilheiro na selva daquele país úmido e quente, paraíso de mosquitos e marimbondos (que os locais usavam a seu favor como arma de guerra), cheio de cavernas e de túneis impenetráveis – estima-se que os vietcongs, os guerrilheiros comunistas, escavaram 360 km deles. Nas palavras de Callado, que espiava tudo em perspectiva histórica, os vietnamitas eram “profissionais da independência” – já haviam expulsado o colonialismo francês na década de 1950, agora davam surras diárias nos americanos – e realizavam o “maior esforço que já fez uma comunidade humana para sair de den­tro de um atoleiro puxando-se pelos próprios cabelos”.


Antonio Callado envolvia com uma camada de fina e elegante narrativa as observações penetrantes do repórter, salpicadas de ironia aqui e ali. Apesar de submetida a um bombardeio descomunal (os americanos jogaram mais explosivos sobre o Vietnã do que haviam feito na Europa durante toda a Segunda Guerra, além do napalm, que queimava as pessoas vivas, e dos gases desfolhantes que acabavam com as florestas), a sociedade vietnamita era plena de novidades: o processo de alfabetização acelerada – tema caro a Callado, que testemunhara o método Paulo Freire sendo praticado em Pernambuco, durante o primeiro governo de Miguel Arraes, no começo da década de 1960 –, e um dos processos mais agudos de liberação da mulher em qualquer sociedade, que passava a ser voz ativa nos destinos do país, inclusive na guerra. “Como sua pátria, a mulher vietnamita passou sem transição do feudalismo e do colo­nialismo para uma esplêndida posse de si mesma”, escreveu Callado. Ele diz que toda cidadã e todo cidadão cumpriam três funções ao mesmo tempo: na produção de alimentos, na alfabetização (como professor ou como aluno) e na luta pela expulsão do invasor.



Cavalo marinho emagrecido


É difícil se recompor de uma humilhação histórica. Há 50 anos, os americanos tentam se esquecer da sova que tomaram no Vietnã. O mais poderoso exército de todos os tempos foi derrotado por uma população de gente (homens, mulheres, velhos, velhas e até adolescentes) pequena e magra de um país pequeno e magro – no mapa parece um cavalo-marinho emagrecido, como definiu Jean Lacouture –, que lutou em condições bélicas desiguais, mas que tinha armas que não se mandam fabricar e nem se compram na indústria armamentista: a dissimulação (era muito difícil identificar quem era um guerrilheiro ou apenas um pacífico camponês; na dúvida, o exército americano criou as free-fire zones, onde primeiro se atirava e depois descobria-se se a vítima era miliciana ou não. O massacre americano a civis na aldeia de Mi Lai, revelado ao mundo pelo fotógrafo do exército dos EUA, Ronald Haeberl, que usou disfarçadamente sua própria pequena câmera pessoal para fotografar a barbárie e mudar o rumo da guerra0, a astúcia em usar os elementos naturais a seu favor e o descomunal desígnio de libertar o país. Uma imagem vislumbrada pela escritora e jornalista americana Mary McCarthy, que também conseguiu entrar no Vietnã do Norte, é simbólica: ela diz que os locais usavam camuflagem com galhos e folhas de plantas em suas cabeças não só para não serem alvos dos bombardeios, mas também como uma espécie de coroa de louros  - como gesto de orgulho pela luta contra os invasores - e emblema da aliança que tinham com  natureza.


O triunfo dos vietnamitas do Norte e dos vietcongs sobre as armadas dos EUA e do Vietnã do Sul é um dos casos mais extraordinários da História; uma população de Davis que não só derrotou a força do formidável Golias, mas também ricocheteou os bombardeios recebidos provocando uma cizânia no colo do país agressor (raramente um país em guerra sofreu tanta oposição interna a ela como aconteceu na América durante a Guerra do Vietnã) e o desajuste de uma geração de americanos, que voltou dos combates mutilada e envolta no vício em drogas – relatórios médicos dão conta que, no últimos anos do conflito, um em cada cinco soldados americano no Vietnã era viciado em heroína.


O jornalismo independente, difícil de ser praticado em guerras, foi exercido com extraordinária firmeza no Vietnã; repórteres e fotógrafos, descolando-se dos briefings oficiais, foram para as múltiplas frentes de batalha cobrir a luta em que um exército regular poderoso enfrentava a assimetria, a agilidade e os deslocamentos da guerra de guerrilha, substancialmente reforçada pelo apoio da população. Foi a guerra que ofereceu farto material à imaginação; a guerra do cinema (cujo ponto mais alto é o Apocalypse now, que Francis Ford Coppola filmou com o roteiro em uma mão e o livro Coração nas trevas, de Joseph Conrad, em outra), a guerra do rock’n’roll, da Motown (lembre-se do lamento de Marvin Gaye em What’s going on), das canções de protesto – jamais houve um conflito armado com trilha sonora tão marcante; a guerra que, por outro lado, mudou comportamentos, reverberou nos pacifistas, no movimento hippie do peace & love e do make love not war, na insubmissão de Mohammad Ali e na consciência, por parte dos negros, de que eles se tornaram a bucha do canhão do exército americano em um confronto que não conseguiam entender.


Os negros eram 11% da população americana, mas 32% do contingente de soldados enviados ao Vietnã. Uma das jogadas mais inteligentes dos norte-vietnamitas foi a de colocar uma DJ que, falando em inglês fluente pelas rádios locais, relembrava aos soldados negros a irracionalidade de estarem lutando ali contra um povo que não era seu inimigo e que o verdadeiro opressor deles era o branco americano que estava são e salvo nos lares dos EUA...


Do ponto de vista institucional, a Guerra Americana no Vietnã levou a duas crises na presidência dos EUA: na primeira, o presidente democrata Lyndon Johnson, que apostara todas as fichas no envio de grandes contingentes de tropas americanas ao sudeste asiático, renunciou a se candidatar à reeleição ao ver que opinião pública se voltara contra a guerra; na segunda, em outro grande momento do jornalismo, a revelação dos chamados Papéis do Pentágono (documentos ultrassecretos do exército americano sobre a guerra), pelo The New York Times, jogou as primeiras porções de cal sobre o governo Nixon. A decisão da Suprema Corte americana que referendava o direito de a imprensa publicar os documentos, é um marco sobre a necessidade de não se manietar o trabalho do jornalismo – e merece ser relembrado, contemporaneamente, com todas as suas consequências, nesta hora em que as ameaças sobre a imprensa recrudescem em todo o mundo.



Camões no Delta do Mecong


Antônio Callado levou quase um ano e duas viagens à Europa para conseguir a autorização para chegar a Hanói, a antiga capital da República Democrática do Vietnã. Sua cobertura da guerra foi publicada no Jornal do Brasil. A reedição de Vietnã do Norte: advertência aos agressores, realizada pela casa matinas, traz também um texto posterior, de 1975, publicado no semanário Opinião quando se anunciou o fim da guerra, com a derrota americana. Homem culto, o autor, ao escrever sobre o sudeste asiático, não se esqueceu de citar o naufrágio de Luís de Camões, no século XVI, no delta do Mecong – lugar estratégico na guerra do Vietnã –, quando o bardo português quase perde, segundo a lenda, os originais de Os Lusíadas.


O jornalismo de Antonio Callado, em qualquer circunstância para a qual a vida de repórter o levava, pautava-se pela obrigação moral, para usar uma expressão de Lionel Trilling, de ser crítico das injustiças. Esse senso moral está vivo, por exemplo, na famosa resposta que deu em entrevista sobre a sua cobertura da guerra no sudeste asiático: “Não fui ao Vietnã descobrir quem tinha razão. Isso eu já sabia”.


Romancista e dramaturgo, Antonio Callado levou o jornalismo brasileiro às alturas. Como diz o grande crítico literário Davi Arrigucci Jr. ao refletir sobre Reflexos do baile (1976), talvez o nosso grande romance do período militar, “a obra toda de Callado tem sido um corpo-a-corpo cerrado com os polos do fato e da ficção. Quem lê a série de brilhantes reportagens sobre o Nordeste [a casa matinas publicará também Tempo de Arraes, de 1964] e o Vietnã não pode deixar de perceber a latência do ficcionista: o aguçado corte literário da linguagem compõe vastos painéis do homem oprimido e sua luta”.



Songbook da Guerra do Vietnã


A Guerra da América no Vietnã (como a chamam os vietnamitas) foi a guerra do rock’n’roll, mas também foi a guerra do soul, das canções de protesto, do country e, claro, das canções pacifistas do movimento hippie. A música, que completava a trilha sonora das metralhadoras e dos motores dos helicópteros, jamais fora tão presente em um conflito armado de tais proporções. Não eram apenas as canções que tematizavam a agressão americana no país do Sudeste asiático, mas também as que clamavam pela liberdade e o fim da caretice, que falavam da saudade de casa e, por que não? Músicas apenas para colocar adrenalina na veia.


A importância dela na guerra é explicita no filme Good Morning, Vietnam, com Robin Willians no papel de um popular DJ. Nos 60 e 70 era impossível viver, mesmo em circunstâncias dramáticas, sem música. 



Dica do editorial


Se você quiser tornar a experiência de leitura ainda mais imersiva, a casa matinas indica aqui dois restaurantes vietnamitas, em São Paulo, muito queridos e frequentados pela equipe.


  • Little Saigon Culinária Vietnamita


Tradicionalíssimo, este restaurante é ideal para quem busca uma comida raiz, com porções generosas e preparadas por uma família vietnamita. Há opções com carne e também veganas, e vale a pena começar pelos Chả Giò Heo — rolinhos de massa de arroz cozidos no vapor, perfeitos como entrada. Para o prato principal, a pedida são os Phởs: noodles caldosos e reconfortantes, especialmente nos dias frios


📍 Endereço: Rua Treze de Maio, 1.088 –Bela Vista, São Paulo


  • Bia Hoi SP — Pub Vietnamita


Inspirado nos botecos de Hanói, o Bia Hoi é um pub perfeito para quem quer experimentar a comida de rua vietnamita sem sair do centro de São Paulo. O cardápio mistura petiscos típicos com releituras criativas e traz opções veganas, além de uma carta de drinques que vai dos clássicos aos autorais da casa. Nossa dica? Comece pelos baos (pãezinhos no vapor).


📍 Endereço: Rua General Jardim, 488 –Vila Buarque, São Paulo


capa do livro Vietnã do Norte

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