O que dizem os livros silenciosos - Parte 2
- casamatinas
- 29 de jul.
- 10 min de leitura

As estatísticas oficiais sobre livros no país indicam uma situação que não se harmoniza com esse farfalhar todo mencionado na primeira parte desta newslleter. Este é o paradoxo em que vive o mercado.
Os números oficiais indicam que estão em queda tanto o faturamento do setor quanto os índices de leitura no país. Quem celebra o buzz do setor livreiro e dos autores, na verdade, estaria representando o papel do bobo da corte, escondendo do rei as agruras da realidade de um setor pequeno que está (estaria?) se apequenando ainda mais. Faça a sua escolha shakespeariana para definir qual seria a “tragédia” do nosso mercado: “tanto barulho por nada” ou “sonho de uma noite de verão”?
Como interpretar essas duas vertentes que se anulam mutuamente: afinal, o Brasil é o céu ou inferno dos livros?
Em primeiro lugar, é preciso considerar que o livro apresenta peculiaridades que dificultam a obtenção de dados precisos sobre a totalidade do mercado. Veja bem, não se está dizendo que eles são errados ou que não têm legitimidade e utilidade. Dados são imprescindíveis para a indústria se autoconhecer e para as ferramentas de inteligência de mercado. Sem eles a indústria do livro funciona muito primitivamente.
Porém (e sempre tem um porém, como dizia Plínio Marcos, de quem também falaremos mais adiante) seria prudente considerar que o painel de vendas de livros e a pesquisa de hábitos de leitura oficiais – o próprio press release da última, de 2024, toma o cuidado de dizer que ela é a “mais completa e aprofundada”, mas não diz que ela é absoluta – não são verdades que recobrem a universalidade do mercado (como muitas vezes aparece na imprensa e nos debates); são verdades verdadeiras, mas verdades parcialmente verdadeiras.
Livro de colorir ou Grande Sertão?
Um diretor de uma grande editora costumava dizer que não se sabe o tamanho do mercado de livros no Brasil. O colaborador da New Yorker (e autor e professor em Harvard), Louis Menand, não discordaria dele. Em artigo na revista, no ano passado, ele escreveu que os dados “de vendas de livros, o número de livrarias e a maioria das coisas relacionadas com o livro são notoriamente inexatas” (e olhe que ele está falando dos EUA, onde a indústria dos números e estatísticas é bem maior e bem mais sofisticada do que por aqui).
Se o autor vende seu livro no seu próprio website (fenômeno bastante comum nos EUA), ele é também uma livraria?, pergunta marotamente Menand. Ou, adaptando para o nosso caso um dos outros exemplos usados por ele: ao responder a uma pesquisa sobre hábitos de leitura, fará diferença para a sua resposta se a última obra que você leu foi um livro de colorir (contabilizado nas listas de mais vendidos) ou o Grande Sertão, de Guimarães Rosa? Nas pesquisas de hábitos de leituras do jornais, as pessoas tinham vergonha de declarar, mesmo com o anonimato preservado, que liam colunas sociais; estas sempre apareciam nos resultados com índices de leitura bem abaixo do que realmente tinham. Por outro lado, elas declaravam que liam os suplementos culturais, porque achavam que isso lhes dava prestígio, mesmo que não fosse verdade.
Um dos métodos de levantamento de dados, que serve de referência para entender as tendências do mercado, é feito pelo sindicato de editores, o SNEL (550 editoras associadas – cerca de 74% do setor, segundo o próprio sindicato; lembre-se que algumas casas têm várias editoras reunidas, portanto são associadas mais de uma vez). Seu painel é composto por informações prestadas pelas próprias editoras (68% da base de associados do SNEL responderam à pesquisa em 2023) por meio de pesquisa online realizada pela Nielsen. Veja bem, 68% das 74% participaram da pesquisa, o que resulta em uma amostragem bem relativa da movimentação do mercado. Além disso, não se tem, na apresentação dos resultados, informações sobre auditoria desses números.
Nesse ponto, precisamos começar a falar dos livros silenciosos.
Eles não estão nas vitrines e nas mesas de entrada das livrarias (muitas vezes, nem mesmo dentro das livrarias), não frequentam a lista dos 100 mais vendidos da Amazon, não saem nos jornais, não são merecedores de reels dos influencers literários e não merecem sequer a atenção dos algoritmos das grandes livrarias online. Mas são um baita naco do mercado real.
Impresso em Cotia
Os livros silenciosos são amplamente comercializados em bienais, eventos e feiras (incluindo as universitárias, que também pipocaram nos campi nos últimos anos); é grande o número de editoras (sobretudo as pequenas) que fazem vendas diretas nessas ocasiões – além das vendas nos próprios websites e (fenômeno recente que vem crescendo) nos próprios canais no Instagram, quando não incluem ainda as vendas por assinaturas.
Essas indies (em número cada vez maior) têm dificuldades para acessar os canais tradicionais de distribuição e de comercialização, seja por razões econômicas (a grana é curta, a margem é apertadíssima) seja porque não têm estrutura para atendê-los. Resultado: estão fora das estatísticas oficiais.
As livrarias de rua, independentes e de nicho, essenciais para uma cena livresca diversificada e viva, dificilmente participam da composição de números do mercado (fala-se que a Nielsen, a mais usada medidora do varejo de livros, cobre cerca de 75% das vendas, mas nem esse cálculo parece ser muito preciso). Mesmo livrarias online não estão todas contempladas nos relatórios oficiais do varejo: a UmLivro, que comercializa as edições da casa matinas e que tem à disposição arquivos para imprimir na cidade de Cotia, pertinho de São Paulo, na casa de milhões de obras de vários países, entre elas as que pertencem ao catálogo das principais universidades americanas, não entra para a contabilidade do varejo livreiro.
Outro setor (cada vez mais importante) não incorporado aos dados oficiais é o dos sistemas de ensino, que, no setor privado, vêm competindo com os tradicionais livros didáticos e os chamados técnicos e científicos (ambos incorporados nas estatísticas oficiais; aliás, essas são as categorias da indústria do livro em maior transformação). O conteúdo produzido nesses sistemas tem editorial de livro, têm produção semelhante ao livro, têm jeitão de livro (escolar) mas... não são (considerados) livro. A comercialização é feita diretamente da escola para os pais, portanto não incluídas nos números do varejo.
Luz de vela
Existem também as chamadas vendas corporativas, que muitas vezes são operações realizadas igualmente de maneira direta entre as editoras e os departamentos de marketing ou de RH das empresas; essa é mais uma modalidade de venda que tende a ficar fora do radar das medições do mercado. Ela tem amplo terreiro para frutificar: as principais lideranças empresariais do planeta passaram a ter o hábito de fazer regularmente indicações de leitura com grande repercussão (um dos casos mais interessantes é do investidor Warren Buffet, que recomenda que se leia todos os dias).
Recentemente, Ruy Castro brincou que gastou mais dinheiro comprando livros de segunda (ou mais) mão para fazer a pesquisa do seu recente Trincheira tropical do que vai ganhar com a venda dele (e olhe que está vendendo bem, pelos números da Amazon). Autores e pesquisadores sabem muito bem da importância dos pontos de venda do mercado secundário de livros, no Brasil chamados de sebos (a explicação mais usada para este nome diz que, antes da luz elétrica, os livros eram lidos à luz de vela e a cera delas, ao cair sobre os livros, acabava gerando certo aspecto seboso; si non è vero...).
Aqui também se registra uma nova tendência. Os lançamentos estão chegando cada vez mais rapidamente ao mercado secundário: leitores contumazes perceberam que podem reduzir seus custos com a compra de livros revendendo-os para os sebos – e assim gerando caixa para comprar novos títulos. É a economia circular funcionando, e o livro é um objeto talhado naturalmente para a circularidade.
A Estante Virtual, plataforma de venda de livros usados com um modelo de negócios inteligente (quem fica com o custo dos estoques são os sebos e os preços são verdadeiramente regulados pela lei da oferta e da procura, ao contrário do mercado primário), tem, registrados na plataforma, quase 8.000 pontos de venda. O número é bem superior ao das livrarias que só vendem livros não usados (aqui reside outra dificuldade para se lidar com as estatísticas: nos EUA, por exemplo, as chamadas livrarias independentes são, muitas vezes também vendedoras de livros usados, como é a mitológica Strand – que não quer ter uma sacola da Strand? –, no nº 828 da Broadway, em Nova York; a Strand é contabilizada como livraria ou como sebo?).
Editor de si mesmo
Existem lojas de conveniência, papelarias, rede de farmácias (em Minas), e até brechós vendendo livros. Quem registra as vendas dos chamados pontos alternativos? Qual o tamanho desse setor? E as vendas chamadas de porta a porta, ainda bastante presentes em certas regiões do Brasil?
O mercado secundário tem ainda uma outra operação, não desprezível: a compra, por parte de distribuidores especializados nessa modalidade, dos estoques que estão sem giro no depósito das editoras – seria bom nem calcularmos esse número para poupar dissabores a nós mesmos. A preço de bagatelas, voltam a ser oferecidos à baciadas em feiras, em sebos, em pop-ups em shoppings centers... sem serem exemplares de segunda-mão, mas com o market price de livros usados.
O caso da escritora Juliana Dantas, autora de mais de 50 títulos, com mais de 200 milhões de páginas lidas no KDP (Kindle Direct Publishing) e mais de 100 mil e-books vendidos, já não é mais segredo; está nas páginas da Amazon. Ela é a face visível do imenso fenômeno dos livros na área digital, a autopublicação. Quando se diz que o mercado de e-books no Brasil é de 9%, esta é somente a parcela identificável declarada pelas editoras (as que declaram).
As cifras oficiais não arrecadam dados de plataformas que ocupam grande parte do segmento digital: o Kindle Unlimited, uma das maiores plataformas, não revela o seu número de usuários, muito deles heavy users de livro, que aproveitam o preço baixo atrativo das assinatura para terem acesso à uma infinidade de conteúdos – é o caso típico das leitoras do grande segmento da chamada literatura mais comercial; muitas das editoras que participam dele e da Skello, com 2 milhões de usuários mensais, não se encontram listadas nos levantamentos oficiais. Juntos, Kindle e Skello são hoje os maiores promotores privados da leitura no país.
E onde estão contabilizados os índices de plataformas de leituras de modelo misto (leitura gratuita e assinatura) como a Academia.edu, ou das gratuitas como o Portal de Livros Abertos da USP, a Brasiliana da UFRJ, a Biblioteca do Senado e o Projeto Gutenberg, entre muitas outras? Diga-se, aliás, que não se conhece um número oficial de leitura nas bibliotecas de prateleiras e tijolos no país.
Encontro entre o digital e o analógico
As editoras e os serviços para os autores que se publicam, no papel ou no digital, parecem estar no país como milho de pipoca na panela: pululando por todos os lados. O self-publishing, o segmento que mais cresce nos livros, de silencioso passou a influenciar diretamente o livro ruidoso: dezenas de autoras de livros físicos mais vendidos no mundo começaram contando suas histórias em plataformas de autopublicação. Hoje, para as grandes casas editoriais, tão importante quanto ter bons autores, é ter bons olheiros farejando os novos talentos autopublicados. Mas isso não basta: as editoras tradicionais teriam muito a ganhar se conseguissem entender o racional que está por trás dos movimentos – de autores e de plataformas – inovadores do universo da autopublicação.
Nunca foi tão fácil escrever um livro, nunca tanta gente escreveu livros (estima-se que em 2021, em plena pandemia, cerca de 2 milhões de títulos escritos e editados pelos próprios autores foram publicados nos EUA; lembre-se que as autoras e os autores mais ativos nessas plataformas chegam a publicar mais de uma dezena de títulos por mês; por conta disso, o Kindle chegou até a estabelecer um limite diário de novos livros por pessoa!).
A soma das plataformas de autopublicação com a IA vai democratizar ainda mais a contação de histórias pessoais. Exemplo: a editora Afluente – parceira da casa matinas em projetos de POD – está lançando a Oca Books que, com auxílio de perguntas e sugestões feitas por inteligência artificial, ajuda as pessoas que não têm pretensão maior do que a de contar a própria vida de maneira clara e decente, a escrevem suas próprias biografias. Todo mundo poderá ter a sua memoir publicada. É a inovação tecnológica sendo incorporada em escala sem precedentes ao mundo editorial.
A impressão sob demanda está ajudando a quebrar uma das barreiras que inibiam o crescimento do self- publishing no livro de papel: a necessidade de se fazerem tiragens mínimas – que na verdade, são máximas para o autor que não tem como escoá-las e nem espaço para guardá-las. O POD é o acerto entre o mundo digital e o analógico. Ele não vai substituir a impressão offset, vai complementá-la. A diferença é que no POD quem determina o tamanho da tiragem é o leitor.
Além das plataforma digitais mais antigas como a Wattpad, surgiram nos EUA novos serviços como Bookbaby e a Bookbub, que não só ajudam os autores a escreverem suas obras, como também se tornarem editores, marketeiros e livreiros de si mesmos. No Youtube brasileiro, Dany Sakugawa (além de outras e outros) dá lições preciosas para quem pretende se lançar como escritor – e como seu próprio publisher ao mesmo tempo. Serviço completo – as relações dos autores com a cadeia produtiva do livro tenderão a mudar bastante nos próximos anos, e o mundo digital tem muito a ver com isso.
O gênio dos livros
Mas isso não é necessariamente novo, não é apenas o mundo digital que amplia exponencialmente essas possibilidades: o dramaturgo e ator Plínio Marcos (olha ele aí) já era um pouco de tudo isso com seus livros, que vendia de bar em bar nas noites boemias da São Paulo de antigamente; os poetas da geração marginal, na década de 1970, fabricavam e vendiam manualmente as edições de suas poesias até na praia. É conhecido também o caso de Frei Betto, que leva na mala seus livros para vender nos eventos que participa.
Tudo, tudo isso, mostra que o mercado de livros é maior, mais diversificado e mais complexo do que emerge na superfície dos números que pretendem dar conta dele. E que tem muito mais oportunidades (viva!) do que parece.
Aldo Manuzio (chegamos nele!), o gênio inovador que deu forma definitiva ao livro portátil – além de criar as novidades como numeração das páginas, a lombada quadrada etc. – na passagem do séc. XV para o XVI, em Veneza (o livro tinha de se consolidar em terra de negociantes!), era um notável e erudito editor, um homem com uma percepção aguda sobre as necessidades do mercado que ele mesmo estava criando e um sagaz vendedor dos livros que produzia na sua tipografia (ah, e amigo de Erasmo de Roterdã). Onde encaixaríamos ele nas estatísticas dos livros?
A maior lição aldina é que a inovação está na origem dos livros. E foi ao perceber isso que Joseph Bezos criou a Amazon a partir deles.
Dicas do editorial
Um mercado editorial maduro também se revela por meio dos livros que publica sobre os próprios livros:
- O primeiro leitor, Luiz Schwarcz, Companhia das Letras, 2025.
- O inventor de livros: Aldo Manuzio, Veneza e o seu tempo, Alessandro Marzo Magno, Coleção Inventores de Livros, Ateliê Editorial, 2025.
- Aldo Manuzio: editor, tipógrafo, livreiro, Enric Satué, Ateliê Editorial, 2024.
- A marca do Z: a vida e os tempos do editor Jorge Zahar, Paulo Roberto Pires, Zahar, 2017.
- Boletim Tatuí, newletter semanal.
Expediente: Livros Imperecíveis, a newsletter da casa matinas. Julho, inverno de 2025. 4ª edição. Escrito por Matinas Suzuki Jr., editado por Luiza Nobre, diagramado por Amanda Piva.
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